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21.10.21

Caçadas de Vida e de Morte [João Gilberto Rodrigues da Cunha]

João Gilberto Rodrigues da Cunha

Cortesia da Editora Arqueiro

A (de)formação de uma nova forma de governar

Sou urbano, nasci e cresci no aço e no concreto da cidade, o campo me é uma incógnita, temor também. Vejo muitos de meus colegas que gostam de passar férias em lugares isolados, no meio do mato e eu pensando em praia. Digo isso porque não consigo entender o porquê de meu fascínio por este universo tão distante de minhas parcas experimentações silvícolas.

O livro Caçadas de vida e de morte (Arqueiro, 400 páginas), de João Gilberto Rodrigues da Cunha, nos remete a um Brasil às portas da República. Um livro agreste e justamente por isso violento e perigoso que tem seus conflitos decididos à bala ou na ponta da faca. Coronéis perdendo espaço, popularidade e influência.

E é nesse contexto que a identidade do povo brasileiro vem se moldando. A transição da Monarquia para a República vem de encontro a interesses mil disfarçados de insatisfação popular ao impedimento de participar das decisões políticas.

Caçadas de Vida e de Morte
Título: Caçadas de Vida e de Morte
Autor: João Gilberto Rodrigues da Cunha
Editora: Arqueiro
Gênero: Suspense e Mistério
Páginas: 400
Edição:
Ano: 2021
Onde comprar: Amazon

Ahhh... mas não seja por isso, este livro vai além, bem mais além. É inevitável a comparação com o insuperável Guimarães Rosa e seus tropeiros, o linguajar próprio do mateiro, palavras em combustão, redicionarizadas na boca do homem simples do campo.

Muitos torceriam o nariz pensando em "Grande sertão: veredas", um livro incomum, robusto, inigualável, porém indigesto para uma geração que busca o imediatismo. É preciso parar e respirar para entender a plenitude de se viajar em um livro assim. Eu mesmo já o iniciei algumas vezes. Sugiro a princípio a leitura do conto "A hora e a vez de Augusto Matraga" a fim de se familiarizar, aí sim serão fisgados pelo grande Rosa, contador de histórias ímpares.

Mas por que deste preâmbulo todo? Para dizer que João Gilberto Rodrigues da Cunha conseguiu o que parecia inconcebível — uma escrita ao mesmo tempo original e rosiana.

Tonho Pólvora representa o povo, o trabalhador incansável no aprender, na busca honesta pela vitória pessoal.

“O jeito de espirrar, cair fora, buscar destino e futuro, e para isso havia ambição em Tonho, apelidado Pólvora pelas vendas que fazia pelo oeste das terras mineiras. Sabia comerciar, era trabalhador, econômico, de convivência amável e simpática, em todo lugar lhe queriam bem.”

José Antônio, o espertalhão, representante do mais ordinário jeitinho brasileiro do vencer a qualquer custo.

“Seu destino, sua luta, sua busca e sua caça eram a riqueza.
Devagar e manso, em cautelas experimentais, José Antônio fora preparando a cama...
Era hora de dar o grande golpe e cair fora.”

Duas maneiras de enxergar o mundo, dois universos em rota de colisão. E no meio disso tudo uma pesquisa das Gerais em estado bruto e poesia, muita poesia.

“Uma bulha seca e curta, vinda do carreador da mata, corta o seu cismar. É paca na trilha, o bastante para uma carga elétrica imediata no caçador, agora alerta, ouvido e vista agudos, imobilizada a espingarda e o braço na posição de ataque, um bater gostoso e forte do coração.
A paca vem nas sutilezas da caça, troteando e parando, parando-troteando, aspirando o ar, perfumes da noite e do milho já orvalhando.
Há lua, baixa ainda, raios quase horizontais profanando a ramagem do brejo, devassando a mata, assumindo posse da noite, varando a escuridão.”

Tonho Pólvora, em sua caminhada, se une a José Brilino, tropeiro experiente, sabedor das coisas da mata, dos bichos, das gentes.

“Zé Brilino era agora condutor de tropa de burros de carga, o transporte comercial do sertão, que conhecia desde Ouro Preto até os confins de Goiás e Mato Grosso. Alugava sua experiência como guia... Ambição não tinha, que dela não precisava. Gostava era da hora do pouso, uns poucos companheiros, a rede armada, a única luz vinda da brasa chupada do pito, em piscadas que alternavam os casos recontados e as risadas dos mais novos que ele soltava seus exageros de mistura com mentiras de tropeiro... Aquele velho, filho na natureza, sabia tudo, mas não era patrão nem empregado, não formava na tropa do mundo. Era dono de sua vida, do seu nariz e do seu rumo, por isso não tinha mulher, pouso ou serviço fixo. A estrada era seu mundo; a liberdade, o seu destino. Por isso não tivera filhos, peias e prisões, nada a amarrá-lo na terra ou na gente.”

José Antônio, chantagista experimentado, alicia Joaquim Teodoro — a noite sempre aproxima sombras.

“(Joaquim Teodoro) Aquela sombra muda, sombria e misteriosa o intrigava, sempre arredorando... buscando disfarçar presença, o olho e ouvido atentos. Um cão de guarda despercebido e perigoso...”

Todos deságuam em Desemboque, curral do coronel Macedo, entusiasta e defensor do Império. Tonho Pólvora, em busca de vencer na vida, e José Antônio, em fuga de um bem sucedido golpe, se aproximam do influente chefe por motivações diferentes. Este para aumentar sua influência sobre o povoado e possivelmente herdar a autoridade, aquele para tratar de terras e comércio.

José Antônio é o rolo compressor que a todos atropela em busca fama, poder e fortuna. Longe das vistas do coronel Macedo se aproxima dos republicanos, demonstrando falsa subserviência ao coronelismo e ao império quando próximo.

“Fama, poder e fortuna são moedas ilimitadas, a sua posse sempre mostra que falta mais a possuir, e a ambição é sua resultante. Além disso, no mesquinho pensamento, essas moedas têm que ter reconhecimento social, traduzido em admiração e inveja do seu possuidor, assim elevado acima dos vãos mortais.”

A morte ronda a todos aqueles que se opõem ao ambicioso José Antônio. Tonho Pólvora busca distância deste elemento pernicioso e seu capanga, mas a vida trata de colocá-los frente a frente o tempo todo. Mal sabe José Antônio que sua fama corre Estados e que caçador pode um dia virar caça.

Este livro é belíssimo (indicado ao Prêmio Jabuti de 2001), recheado de aventuras, amores e principalmente ensinamentos. Seu final todo explicativo, meio novela das sete, me deixou um pouco cabisbaixo, principalmente depois de tanta poesia, achei desnecessário. Ainda assim ele não perde o brilho, a virtude de encontrar palavras em seu nascedouro: na boca do falante.

“Vergonha abaixa as cabeças mais do que o medo, porque vergonha é virada pra dentro, e o medo é coisa de fora. ”

E mais uma vez um livro me faz refletir e a partir de palavras simples discorre filosofia.

“Mas a vida é mesmo cheia de talvezes.”

A simplicidade é mesmo um tesouro! Livro para se ler com o coração.

17 comentários em "Caçadas de Vida e de Morte [João Gilberto Rodrigues da Cunha]"

  1. Oi, Rodolfo! Que delícia de resenha! Moro no interior de Minas e essa simplicidade me encanta. Esse conteúdo poético que o livro possui é o que mais despertou meu interesse pela leitura. Personagens interessantes e distintos, trajetórias que se cruzam. Quero ler!

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  2. Um livro que retrata o Brasil como ele é.
    Tonho é um sujeito simples mas que ensina muito

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  3. Rodolfo!
    Mesmo com seu desagrado pelas explicações minuciosas do final do livro, acredito que ler uma boa literatura nacional, com personagens tão peculiares e únicos, deve ter dado um prazer magnífico à leitura.
    cheirinhos
    Rudy

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  4. Um livro com muitos personagens interessantes, acho que seria uma boa acompanhar eles e uma coisa que mais gosto em ler nacional é ver personagem com características que só daqui do Brasil.

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  5. Eu fiquei aqui lendo e pensando ali em O Auto da Compadecida, um livro que li nesse ano e me fez um bem enorme, pela simplicidade,pela narrativa e pelas trapalhadas daqueles dois amigos e de todos os personagens.
    Eu não pensaria duas vezes em deixar tudo e ir pro meio do mato rs eu sou uma pessoa que sonha com a solidão, sabe, o morar sozinha, sem vizinhos, sem contato algum com a humanidade.
    Sonho de vida é ser uma eremita e pronto, tá tudo bem rs
    Por isso, acho que seria um livro que me faria um bem danado, pois amo esse lado "mato" de ser, simples assim.
    Se já queria muito ler, agora quero mais ainda!
    Beijo

    Angela Cunha Gabriel/Rubro Rosa/O Vazio na flor

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  6. Acho tão bom esse tipo de leitura que nos tira da zona de conforto, que nos apresenta uma realidade diferente, ou por conta de um tempo diferente do nosso, ou por um estilo de vida que não se parece com o nosso.

    Danielle Medeiros de Souza
    danibsb030501@yahoo.com.br

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  7. Eu tinha visto esse livro, mas não sabia nada sobre; que incrível saber desse contexto histórico e de tudo o que há nessa leitura. Dá pra ver que é uma leitura marcante.

    Abraços

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  8. Olá,

    Muito interessante esse livro, pelo visto retrata o Brasil mesmo.
    Não conhecia ainda

    Beijos

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  9. Olá! Eu estou muito curiosa para conferir esse livro, pois acredito que será possível fazer um paralelo do enredo, com o que, infelizmente, ainda acontece (muito) no nosso dia a dia né.

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  10. Eu sou da cidade, mas também cresci na roça da minha avó, um lugar isolado, tranquilo. Mas entendo você quando pensa em praias também, eu amo!
    Confesso que esse tipo de livro eu li mais quando estava estudando, mas gostava do aspecto histórico, das explicações, de como podemos ver o Brasil de uma forma mais ampla.

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  11. Que linda resenha Rodolfo!!a simplicidade é mesmo um tesouro .concordo .
    Eu nasci e vivi parte de minha juventude entre a roça e a cidade e sei bem como é as pessoas que mesmo na simplicidade nos ensinam tanto mas também existiam os espertinhos que gostavam de dar seus jeitinhos.parece ser uma obra que retrata bem o ser humano.
    Bjs

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  12. Olá Rodolfo!
    A vida no campo me é bem familiar, mas não conheço de todo os nuances do sertão. Nunca li Guimarães Rosa, acredito que ainda não tenho maturidade para tal, mas as críticas de Cunha sobre a índole humana são muito interessantes. Vi recentemente um profissional que admiro muito fazer justamente essa reflexão sobre o medo e a vergonha. Mais uma indicação de leitura para se ter em mente.
    Beijos

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  13. Oi, Rodolfo!
    Confesso que prefiro o campo em vez de grandes cidades de aço, mas realmente, ir a praia é muito bom, graças ao lugar onde moro posso frequentar sempre :)
    Quanto a Caçadas de Vida e de Morte, apesar do romance predominar nas minhas leituras, eu leio de tudo, mas o livro tem que despertar o meu interesse, e isso não aconteceu com esse, não fiquei curiosa para conhecer mais de Tonho Pólvora e José Antônio... Bjos!

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  14. Sem dúvida uma leitura para lá de interessante, afinal trata de um Brasil não tão distante em termo de governo e desgoverno e o que as pessoas são capazes de fazer para chegar ao poder ou simplesmente se manter lá, em contrapartida também mostra aqueles que estão apenas tentando sobreviver ao mundo tão cruel e caótico, espero ler em breve.

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  15. Mostrar o campo é algo maravilhoso, um lugar que adoro. Ler esse livro tem personagens muito interessantes e que ja ouvi falar tempos atrás. Não tenho habito de ler livros nacionais, somente os que me chamam a atenção, e esse é uma daqueles que quero conhecer um pouco mais.

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  16. Oi, Rodolfo
    Mesmo tendo as ressalvas com o final do enredo, parece ser uma leitura maravilhosa. Podemos aprender mais da cultura do nosso país, personagens cativantes.
    Quero muito ler, beijos.

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  17. Oi, Rodolfo
    Conhecia o livro só de nome, mas curti muito sua resenha, e fiquei com vontade de lê-lo!
    Parece ser uma história forte, bem contada, e com um jeito poético que nos revira por dentro.
    Pena que o final foi corrido, mas o importante é que a leitura te marcou.
    bjs

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