O renascimento da morta
Depois da vida, a liberdade é, sem dúvida, o bem mais precioso que temos. Prive o ser humano de sua liberdade e teremos aí alguém que venderá sua alma para reconquistá-la. Basta observar alguns delinquentes que, quando presos, gastam fortunas, enriquecem advogados, vendem o que têm e o que não têm, só para deixarem de ver o sol nascer quadrado.
Quando esta privação vem acompanhada de torturas físicas e psicológicas, é possível que quem sofra tal mal consiga enxergar o inferno contido em cada dia, em cada surra, estupro, humilhação. Será preciso morrer em vida e ressurgir, reinventar-se. E nem sempre quem renasce após uma morte desta natureza consegue ressurgir sem mácula.
Este é o enredo de
Diário de uma escrava (
Darkside, 224 páginas) da escritora gaúcha Rô Mierling, que aborda com propriedade mazelas e sequelas da vítima de um sequestro que passa por fases muitas vezes incompreensíveis para aqueles que vivem no conforto de um lar em que se é amado e respeitado.
Num belo dia você é uma doce menina caçando uma borboleta para imortalizá-la em seu quadro:
“A menina levantou o frasco e ficou observando o inseto se debater até que, cansado e sem ar, cedeu e caiu no fundo do pote. Ela esperou por mais dez minutos, abriu o pote, pegou um alfinete e espetou entre as suas asas, matando-a enfim... A borboleta agora era sua, eternamente sua.”
No outro você é a própria borboleta, sem asas e sem fôlego, dentro de um buraco sem saber por quê. O nome da vítima é Laura. Bem, o nome dela não importa, poderia ser qualquer um, afinal de contas isso não é tão incomum quanto possa parecer (na contracapa diz que no Brasil, 250 mil pessoas somem sem deixar vestígios). Sua mãe costumava chamá-la de Ursinha, um apelido fofo que ela já começava a achar infantil. Porém, o mundo não é fofo, nem as pessoas que nele habitam. O mundo é uma fábrica de Ogros (que é como Laura chama seu captor), patologicamente desequilibrados, cheios de taras e desejos.
Laura percebeu que aquele homem, o Ogro, aparecia nos lugares mais inusitados e sempre com o olhar fixo nela. Mas não deu importância, este foi seu maior erro. Só foi percebê-lo depois, dentro de um buraco infecto:
“Estou com o balde grande lotado de fezes e não sobrou muita água. A vontade que tenho é de me afundar nesse balde tão cheio de merda quanto a minha vida.”
Logicamente que isso não é o pior que poderia lhe acontecer. Há uma rotina monstruosa a se seguir, afinal de contas, ela tenta negar, está lá para satisfazer o Ogro, em toda sua perversão e violência. Daí nasce o ódio, o desejo insano de vingança:
“Olha só para você! A verdadeira mulher para mim, que me entende, me ama e tenta me agradar. A única que me aguentou até hoje. Sei que você foi feita para mim, a verdadeira mulher, forte, feroz, mas submissa. Até desse seu olhar de ódio, que você tenta disfarçar, eu gosto. Inclusive, até me excita...”
Não há a quem recorrer, não há com quem negociar (há quem recorra a Deus e passa a não acreditar em mais nada). Sua vida é feita de medo e tentativas frustradas de fuga, todas com consequências e castigos lúbricos e rigorosos.
“— Estou brincando... se acalme... Vamos, não chore, foi só uma trepadinha, nem foi tão ruim assim. Só usei gasolina para te limpar porque não tenho outra coisa.”
Isso mesmo que você leu – gasolina para limpar os ferimentos após um estupro de todas as formas possíveis, sem dó ou piedade.
A depressão vai tomando conta daquele corpo maltratado e é lógico que o mesmo vai se desumanizando:
“Hoje, eu me levantei para fazer minhas necessidades, comi um pedaço de pão e chorei. Sempre chega uma hora em que o ser humano deixa de ser humano, deixa de ter esperanças. Cheguei ao meu limite.”
O que mais dói é saber que ela vai perdendo o controle sobre si mesma. Quanto mais fundo você vai chegando neste poço, mais começa a se observar como outra pessoa. Deixa de ser uma menina cheia de sonhos e passa a ser apenas um pedaço de carne a saciar a fome de um animal. Passa a depender dos humores do Ogro, das necessidades do Ogro e, pasmem, dos carinhos do Ogro. Acredita que sua vida anterior não exista mais e que ela precisa viver com o pouco (seja lá o que ela entenda por pouco nestas condições) que tem:
“Não quero ser um fugitiva e muito menos uma cúmplice desse monstro... Minhas lágrimas molham o lençol e eu, por incrível que pareça, me sinto segura nesse buraco... Porém, se sairmos daqui juntos, o que será de mim? E se a polícia pegar esse monstro e eu voltar para casa? Como vou olhar para minha mãe e meus amigos? E se eles puderem ver em meu rosto as atrocidades que o Ogro fez comigo? Como vou poder aguentar a dor da humilhação?
Nunca mais serei a mesma pessoa, não serei mãe, esposa, não terei família, nunca serei feliz. Então, por que sair daqui?
Me pego torcendo para nunca mais ver a luz do sol...”
É a inversão de papéis. Em sua cabeça seu algoz passa a ser o único que a compreende e ela tem que conviver com alguém que lhe mostra um pouco de carinho já que ninguém mais irá demonstrá-lo. Este tipo de aceitação faz o leitor encher-se de um rancor impotente, difícil de levar adiante a Síndrome de Estocolmo que invade as páginas.
E o que dizer dos familiares, principalmente de uma mãe que nunca perde a esperança?
“— Não! Você não está dentro do meu coração, da minha alma, não chora toda vez que passa na porta do quarto dela. Você não escuta o eco da voz dela ressoando pelos cantos da casa na madrugada. A risada dela no banheiro, enquanto escovava os dentes. As caretas que ela fazia quando eu a mandava tirar o lixo. Você vê isso na sua mente dia e noite? Não, claro que não, você se acomodou com essa frase ridícula de que tudo tem um motivo, se escondendo da dor, mas eu não, eu sinto, dói e, todo dia, eu morro um pouco pela falta dela.”
Laura não pensa assim. A Laura de antigamente está morta e a esperança foi enterrada junto a ela. Só que a luz surge de onde menos se espera e um caçador incansável entra no jogo. É neste momento que, se estivéssemos em um cinema, bateríamos palmas. Não é um príncipe, mas é talhado para a caça, um justiceiro para nos redimir:
“Daniel fumava desesperadamente. Ele sabia que isso ainda ia matá-lo, mas não ligava. Na verdade, desde seus 16 anos ele vivia no limiar entre o foda-se e a sobrevivência. Devido ao seu espírito duro e seco, o serviço policial lhe pareceu uma boa opção. Ele passou em todos os testes com louvor, mas não por ser um ícone do bom comportamento e da disciplina – não, ele passou porque queria passar e tudo que Daniel queria, ele conseguia.”
Ainda estou digerindo o final, final que engoli sem um copo d’água sequer, assim à seco e passou doloridamente pela garganta, queimando meu estômago e meu espírito, tudo a um só tempo. Transcorrido algum tempo as coisas foram de assentando e tomei consciência de que o final foi prudente e espelhou a realidade. Não digo mais nada!
A edição é belíssima, mas dizer isso da
Darkside é chover no molhado. Ao final há notas de casos e fatores os quais o livro se baseou, todos eles reais e documentados, além da bibliografia consultada para aqueles que gostam de se aprofundar mais na leitura.
O que posso dizer é que é sempre prudente seguir o conselho de nossos pais: não aceite nada vindo de um estranho! A não ser que ele caridosamente queira nos dar um livro da Darkside.