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11.2.16

A Linha Tênue [Rubem Cabral]

Ed. Caligo, 2014 - 264 páginas:
      Quais são os limites da palavra escrita? Até onde um livro poderia invadir a sua zona de conforto? Aqui: realidade. Lá: fantasia. Seria assim tão fácil? Você está mesmo tão seguro? A LINHA TÊNUE, o mais recente livro de Rubem Cabral, se propõe exatamente a isso com 29 contos que fogem do comum, querendo escapar de suas páginas e ganhar as ruas do mundo real. Um trabalho de escrita ousado, experimental e, ainda assim, acessível e divertido, que deseja definitivamente conquistar seus neurônios. 

Veja o preço:



A razão na corda bamba

Este é o último livro de uma série de livros da Caligo Editora que recebi de presente de minha querida amiga Bia Machado. Quero dizer aqui que ele não me surpreendeu, muito pelo contrário. Fui brindado com um livro de qualidade superior, não menos que excelente. Já esperava por isso – capa e edição caprichados são lugares-comuns na editora, assim como autores criativos e originais.

O livro A linha tênue (Caligo, 264 páginas) de Rubem Cabral, inexplicavelmente, mexe com a gente: de religião à fantasia, do policial ao corriqueiro, do horror à FC. Tudo se resume ao prazer de se finalizar cada conto com um sorriso no rosto ou com uma interrogação enorme no semblante (pura provocação que aceito sem restrições).

Iniciei a leitura do livro pensando em comentar um pouco de cada um dos contos e me deparava com pérolas que me faziam retornar à infância:

“... Você encheu o balde de água e foi brincar nos fundos, perto do galinheiro... Não se importava com vermes nesta época, você saíra sem camisa, mas filtro solar também não existia. Crianças tinham lombrigas e tomavam purgante, se queimavam demais de Sol, viviam de joelhos esfolados e bochechas descascadas de tanto soltar pipa. Crianças eram crianças e não estas coisas pálidas e mimadas, que só conhecem a luz da TV e do computador...”

Putz... maior paulada não é mesmo? É difícil ler isso e não se emocionar ou se revoltar, principalmente se for da geração Z. E passeando lentamente por cada conto e cada verdade cheguei à conclusão que não conseguiria comentar um a um. Os contos eram tão instigantes e tão díspares que eu já estava escrevendo um outro livro só para explicá-los.

No momento estou boquiaberto. O prazer de ler contos desta natureza (e olha que tenho inúmeras restrições e dificuldades com contos, inclusive os do mestre Stephen King) não tem preço! Não fui cru em direção ao autor, já conhecia parte do trabalho organizado pelo mesmo na “Antologia de contos fantásticos” e fui novamente fisgado por suas palavras:

“— A meta da linguagem é a metalinguagem — pensou, em um último lampejo, já desconectado de qualquer sentido ou razão.”

São trechos e mais trechos que me faziam reler palavra por palavra para degluti-los melhor, como a tradução da ausência:

“Ainda nos primeiros dias em que fiquei só, uma dor forte no meu ombro esquerdo quase não me permitia levantar o braço. Logo descobri que a razão era a posição de deitar: que, inconscientemente, eu tentava abraçá-la e passava a noite com o corpo pesado sobre o braço. Meu corpo estranha a ausência dela.”

Existem ótimas sacadas com frases bem construídas, provocativas, tapas na cara de uma sociedade hipócrita e dissimulada:

“Na Avenida Mem de Sá, fieis da Assembleia de Deus dividiam uma marquise com os pecadores do centro espírita linha branca, de forma até respeitosa.
A chuva era por tudo isso democrática; ninguém deixava de se batizar com a água límpida que era aspergida dos céus, ninguém deixava de compartilhar um pouco de imundice também.”

Como não se apaixonar pela escrita, como não se envolver, ainda mais quando o autor caminha por uma estrada de várias realidades em que Philip K.Dick reina lisergicamente absoluto:

“— Não, não sou você, seu idiota. Ao menos, não exatamente — ele riu. Sou as versões perdidas, de outras realidades, onde as coisas não aconteceram como você se recorda. Aquele muro que você se recusou a pular e por isto se safou de ser morto por um rottweiler, o atalho que você na última hora não tomou, escapando de ser violado e estrangulado com meros oito anos incompletos. Você é a versão com sorte, eu sou a soma de todas as outras. Afogado, estraçalhado, carbonizado. Infelizmente, este tipo de coisa, não me permitem esquecer.
... Hesitante, acabei por concordar. A criança me tocou o braço e percebi fatias geladas de melancia, rosto queimado de sol e melado de sorvete, moedas trocadas por dentes de leite sob o travesseiro, circo, gols, notas dez em matemática e redação, filhotes de cães, excursões escolares e bolos de aniversário passando céleres por meus olhos e deixando somente o vazio em seu lugar...”

A simplicidade de uma avó diante do inexorável:

“A porta com a pintura descascada protestou e rangeu. Entrei pela cozinha e a fragrância dela estava em todo lugar: um misto de alfazema, leite de rosas e sabonete Alma de Flores. ‘Não me deixem enterrar direto na terra, Cicinho. Não quero ficar lá num caixão que vá se encher de água quando chover e eu lá parada, lá dentro; presa me afogando...’”

A loucura descrita pela mente do próprio louco (ou seria o único de mente sã?):

“... Havia dias em que só queria berrar; tão alto e por tantas horas que nem mil injeções me interromperiam, que nem minhas cordas vocais feridas poderiam me impedir. Gritar por gritar, depois interromper de repente, sem ter ciência sequer da razão... Sabe, calmantes não funcionam comigo: os caras de branco não entendem, mas meu corpo, ele processa venenos. Eu poderia beber ácido de bateria se quisessem, aspirar fumaça direto do escapamento... comer chumbinho e achar graça do gosto... Acho que é o que acontece com todos nós; com os que ousaram transcender, com os que não se prendem mais às convenções castradoras que todos insistem em nos martelar nos miolos desde o dia em que somos cuspidos da carne de nossas mães. Eles nos trancam aqui porque nos invejam, porque ganhamos superpoderes.”

E há mais... muito mais. Contos fugindo da estrada certa, ganhando atalhos, equilibrando-se entre razão e loucura, numa linha delicada que pode se romper. O autor Rubem Cabral é, sem sombra de dúvidas, um destes autores que continua oculto do grande público, o que é lamentável. Precisa ser reconhecido com urgência.

Só me senti assim quando li André Carneiro e Braulio Tavares pela primeira vez, ambos também se mantêm repousando em algumas bibliotecas, sem o devido reconhecimento.

Se recomendo? É lóóóóóógico que sim. Livro imperdível! Tomem conhecimento de mais um autor nacional com talento de sobra!

Rodolfo Luiz Euflauzino
Ciumento por natureza, descobri-me por amor aos livros, então os tenho em alta conta. Revelam aquilo que está soterrado em meu subconsciente e por isso o escorpiano em mim vive em constante penitência, sem jamais se dar por vencido. Culpa dos livros!
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16.11.15

Redrum: Contos de Crime e Morte [organizador: Vitor Toledo]

organizador: Vitor Toledo
Ed. Caligo, 2014 - 150 páginas:
      Sete contos dão corpo a “RedruM – Contos de Crime e Morte” que, naturalmente, transitam pelos campos do assassinato em seus enredos. “Refração”, conto que abre o livro de Diogo Bernadelli, “Segunda Sombra”, de Vitor Toledo, “A Noiva Liberdade” de José Geraldo Gouvêa, “Benevolência”, conto de Bia Machado. Os contos “A Vidente” de Pedro Viana e “A Marca” de Fabio Shiva. “Uma Noite no Farol”, de A. Z. Cordenonsi. Não tenha medo de um olhar torto por segurar este livro ensanguentado. Os vizinhos não bisbilhotarão pelo vão da cortina. A polícia não baterá em sua porta. Ninguém saberá de nada. De agora em diante, tudo o que encontrar nestas páginas será mantido no sigilo dos cúmplices.

Onde comprar:

Sangue a cada passo

Contos são beijos roubados no portão, é preciso aquela empatia, aquela conexão temperamental “autor/leitor”, que transforma páginas e mais páginas em magia. E isso aconteceu comigo neste livro.

Em mais um presente da Editora Caligo, vi-me arremessado sem dó nem piedade no meio da tormenta que é Redrum: contos de crime e morte (150 páginas), coletânea organizada por Vitor Toledo, também um dos autores.

Relativamente curto, porém com um apetite imenso pelo crime, o livro possui sete contos bem diferentes, com um traço peculiar que os liga: sangue! A visão especular transforma Redrum em Murder, altamente apetitoso para todos aqueles que lembraram a cena de “O iluminado” de Stephen King. Quem não conhece, não haverá problemas, irá saborear da mesma forma.

Refração - Diogo Bernadelli. A estrutura do conto me fez lembrar o filme “Irreversível” (inclassificável). Cru e violento é uma pancada no plexo solar. Com flashbacks a todo momento picando seu andamento para que possamos entrar na mente e na perspectiva de cada personagem, vai se desenrolando sem dó, só dor.

A paralisia diante do impensável. O descongelamento lento e gradual, antinatural, num corpo cheio de droga:

“Meu coração torna a bater atrás dos ouvidos, ensurdecendo-me momentaneamente para o mundo de fora e abrindo-me a todas as emoções, que por sua vez se perdem furiosamente em um ralo no meu peito. Não há nada dentro de mim e, por outro lado, isso é muito mais que o suficiente. O que diabos você está esperando?, pergunto-me, então me liberto daquele cimento psicossomático que me envolve dos joelhos aos pés.
Disparo para baixo, vencendo três degraus da cada passada. As calças encharcadas de cerveja, o coração batendo, os ouvidos parcialmente imprestáveis, os gestos como reflexo do medo. E o corpo um manequim da droga.”

Segunda sombra – Vitor Toledo. Com grande habilidade, o autor vai alinhavando a mente de um personagem complexo e doentio que se arvora no direito de ser Deus — ter a vida e a morte em suas mãos. A epígrafe do início já nos dá o gostinho do que vem pela frente:

“Decididamente, não compreendo por que é mais glorioso bombardear uma cidade do que assassinar alguém a machadadas.” (Crime e Castigo – Dostoiévski).

Escrita vigorosa, a lembrança do sangue aguça e dirige a atenção do leitor:

“Se escrevo estas linhas é porque sucumbi à utopia de buscar alívio sem trair o meu silêncio. Bem sei que isto não me traz nenhuma dignidade... O tempo pode ter depositado uma fina camada de poeira sobre estas imagens, no entanto jamais me abandonarão por completo. Já o sangue... Em minhas lembranças, ele nunca descolore. Sempre o mesmo escarlate morno e denso.”

A noiva liberdade – José Geraldo Gouvêa. O tom confessional deste conto nos faz mais próximo da personagem, tornamo-nos íntimos ao compartilhar de suas dores e do peso de sua culpa. Podemos pecar pela omissão?

“— Fui criado para crer que Deus era justo, mas ele não é. Tanta gente inocente sofre, se humilha e vai morrer sofrendo. Antigamente a gente acreditava em sofrer para comprar o céu, mas hoje sei que isso é só para o pobre sofrer calado. O pobre tem que acreditar que o inferno é para o rico e que o sofrimento é uma espécie de sabão do espírito.”

Benevolência – Bia Machado. Conto surpreendente em que a personagem tenta se eximir da culpa de ter as mãos manchadas de sangue por vivenciar indiretamente um crime.

Gosto de contos que não se concluem em si, deixam aquela pequena fagulha que nos força continuar, nos acende, nos captura. O final é previsível e por isso mesmo excelente. Manteve-me o tempo todo ligado:

“... E só de lembrar que quase dois anos depois a cidade estava em todos os jornais, pelo pior motivo... Sim, fomos todos culpados, cada cidadão que estava aqui à época. Todos nós, que convivemos com essas pessoas sem nos darmos conta do que acontecia. Ou sem nos importarmos. É muito fácil ver as coisas do lado de fora, bem longe, afastados do tudo o que aquilo significava. É tão... reconfortante!
... Às vezes, aceito que não, não foi real. Na maior parte do tempo, porém, minha impressão é outra. Mas é melhor não falarmos sobre isso. É melhor encerrarmos por aqui.”

A vidente – Pedro Viana. Este conto foge um pouco à regra. O fantástico imiscui-se ao dia-a-dia, tornando verossímil um embuste muito bem planejado. A consequência não poderia ser outra a não ser – sangue.

“A faca moveu-se na direção... Por um momento, foi apenas um toque frio e metálico, que não lhe trouxe nada além de um leve formigar. Mas depois uma dor cruzou seu corpo como um raio cruzaria o céu. Não viu o sangue, mas pode senti-lo fluir. Tentou pedir por socorro, mas o que saiu foi apenas um grito de agonia. Sem forças, sentiu seu corpo sucumbir à dor e tombar no chão.”

A cena final me arrancou uma lágrima, tremendamente poético, estupidamente real:

“Sem saber exatamente como... teve outra visão. Longe dali, uma mulher espantosamente bonita abraçava o marido e os dois filhos para tirar uma foto num parque de diversão. Comemoravam o aniversário dos gêmeos e todos sorriam, com exceção da mulher. Aquele momento a fez lembrar de alguém que desejava esquecer, mas nunca conseguira. O marido não percebeu, assim como os filhos, mas naquele instante, a mulher recordou-se da mãe e sentiu uma pontada de saudade no coração.”

A marca – Fabio Shiva. Por sua versatilidade, o autor não cansa de me surpreender positivamente. Um espetáculo visceral e visual. Traz para o romance policial a ufologia, terreno fértil e espinhoso. É preciso dupla habilidade e conhecimento profundo de ambos os temas para não se perder em vazias divagações.

O autor, com mãos delicadas, insere o assunto e nos faz pensar sobre nossa origem, mas não sem uma pitada vermelha de violência inerente ao ser humano:

“... De dentro de cada garrafa plástica de 50 ml, nadando em um líquido composto por água, aminoácidos, minerais, vitaminas, glicose, soro fetal e antibióticos, centenas e centenas de mudas testemunhas presenciaram o evento de minha explosão emocional, acontecimento muito vasto, complexo e demorado para ter qualquer significação em suas curtas vidas celulares.”

Uma noite no farol – A.Z.Cordenonsi. Fechando a coletânea temos um conto denso, clássico. A morte nem sempre é o que parece, há camadas e camadas a serem reconstruídas e desvendadas.

Seguindo a tradição do gênero detetivesco, calcado no whodunit, que deu inúmeras alegrias aos fãs de Agatha Christie, Arthur Conan Doyle e Edgar Allan Poe, o autor mergulha fundo em carruagens e castelos, com ausência de tecnologia, para desvendar um crime utilizando somente a razão:

“Fiz e refiz o trajeto várias vezes, mentalizando meus passos com extrema precaução. Depois entrei e saí de cada aposento sem escrúpulos, mesmo com a presença do vigário a me observar. Por último, retirei dos bolsos o relógio que havia encontrado no quarto.
Sorri com satisfação quando a compreensão me atingiu. Retirando um elemento da equação, finalmente todo o resto fazia sentido.”

Livro pra lá de saboroso. Então preparem-se – haverá sangue pelo caminho! Cuidado com cada passo! Parar em meio a uma leitura assim é impossível!

Rodolfo Luiz Euflauzino
Ciumento por natureza, descobri-me por amor aos livros, então os tenho em alta conta. Revelam aquilo que está soterrado em meu subconsciente e por isso o escorpiano em mim vive em constante penitência, sem jamais se dar por vencido. Culpa dos livros!
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24.9.15

A Forma da Sombra [Fernando de Abreu Barreto]

Ed. Caligo, 2014 - 116 páginas:
      Romance de estreia de Fernando de Abreu Barreto, A FORMA DA SOMBRA carrega todas as características que são marcantes no autor: o texto direto e cru, o controle da tensão e a criação de personagens sólidos e profundos. Thriller ágil, que envolve o leitor nas primeiras páginas, o livro rompe a barreira do gênero e se insere entre os títulos de alta literatura brasileira, arrancando elogios de autores contemporâneos consagrados, como Carola Saavedra. 

Onde comprar:



Quem ou o que sou eu?

Escolhemos o livro ou o livro é que nos escolhe? Com A forma da Sombra (Caligo, 116 páginas) não aconteceu nem uma coisa, nem outra. Fui mais uma vez agraciado com um presente da amiga Bia Machado. Fiquei matutando sobre o título, sobre a forma como o texto se encadeava, sobre a sombra que o texto produzia em minha mente já delirante, faminta por cada detalhe.

Capítulos curtos em primeira pessoa são, geralmente, de difícil digestão, mas não é este o caso. O autor Fernando de Abreu Barreto (guardem bem este nome) consegue imprimir ritmo e tensão constantes. Não trata o leitor como um indigente literário. Corre riscos. Tem talento de sobra para isto:

“Entre as estações acontecem muitas coisas, há mais vida na escuridão do que na luz. Ali sou verdadeiro, como à noite. Nos túneis soa uma música que não é cantada, ou tocada, é atrito de aço e aço que termina em música...”

Este texto fica gravado atrás das retinas, como quando olhamos de relance para o sol, fechamos os olhos e lá está ele, sua forma negativa, um flash de máquina fotográfica, o farol alto do automóvel em sentido contrário. A forma impressa lá, fantasmagórica:

“E compreendi que não preciso mais de comida. É a vida daquele lugar que me satisfaz. O que fica para trás impresso no ar em alta velocidade, despojo das almas que transitam por ali sem perceber que deixam solta uma parte do que foram, o que somente eu consigo enxergar.”

O narrador não gosta de sol, vive no escuro, trabalha nos túneis da Estação. Lá é seu habitat, lá ele é dono e senhor das sombras e de si mesmo. Quer saber quem é, qual sua natureza. Vai se dando conta ou perdendo completamente a razão, não há como saber. Suas confissões alternam passado e presente. A escrita beira o clássico, consigo perceber cada pensamento, com requintes góticos, de sua luta pela sobrevivência. Isso serviria de justificativa para seus atos?

“Nada é como foi, ou nada era o que parecia, o que não tem importância. É provável que eu não compreenda o sentido da minha existência, que jamais descubra o que sou. Mesmo assim, como para o macaco, o jabuti e o homem, para mim o que importa é sobreviver e eu estou aprendendo.”

Não há como rotulá-lo, ele é um ser único, um predador. Vai deixando sua marca rubra, maculando o território por onde passa:

“Procuro um tatuador indicado por um de meus novos amigos de trabalho e peço que escreva, em arco, no meu peito a frase che tan tan ajucá atupavé, um antigo desagravo indígena que pode ser traduzido como sou forte, matei e comi todos. Começo a sentir orgulho, porque é assim que tem que ser...”

É muito difícil simpatizarmos ou mesmo respeitarmos aquilo que é diferente, aquilo que nos causa estranheza. Conviver então é impossível. Não nos damos a chance de compreendê-lo:

“... Penso em sair da cidade, mudar para algum lugar onde as pessoas não precisem compartilhar suas vidas, ou a vida alheia. Um lugar onde o sol suma por meses e cada um cumpra uma função independente. Onde as particularidades sejam respeitadas e nada seja tratado como estranho, ou diferente, porque tudo e todos são diferentes. Onde a diferença seja o ponto de igualdade. Esse lugar, nunca encontrei.”

O narrador se compara a uma lista enorme de espécies de hábitos nortunos, achei incrível, prova de que tenta se reconhecer como parte de alguma classificação taxonômica qualquer. Procura incessantemente seu lugar no mundo. Seria ele de uma nova espécie ou apenas um lunático?

“Soube, pela primeira vez, que ninguém entenderia minhas motivações. Nenhum homem aceitaria a existência de um animal cujo impulso é devorá-lo sem atribuir a ele o rótulo de besta que deve ser abatida.”

É um romance, ou melhor, uma novela, com um núcleo pequeno, mas enormes questionamentos. Um livro que suscita mais perguntas que respostas, porque elas estão em nós mesmos, cada leitor torna-se obrigatoriamente um coautor.

A editora Caligo tem se mostrado a menina de meus olhos. Surpreendente, inquietante! Um oásis em meio a tanta mesmice que vem de fora. Se querem diversão, não haverá problemas, vocês podem achar uma leitura descartável inclusive em gôndolas de supermercados. Agora, se querem algo realmente desafiador, esta leitura é imprescindível. Altamente recomendável!

Rodolfo Luiz Euflauzino
Ciumento por natureza, descobri-me por amor aos livros, então os tenho em alta conta. Revelam aquilo que está soterrado em meu subconsciente e por isso o escorpiano em mim vive em constante penitência, sem jamais se dar por vencido. Culpa dos livros!
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24.6.15

Pretérito Imperfeito [Gustavo Araujo]

Ed. Caligo, 2015 - 286 páginas:
      "Gustavo Araujo procura, com êxito, combinar numa só pancada a sobriedade do realismo barretiano com a habilidosa e visionária vocação dos autores contemporâneos. Em meio a isso tudo, Toninho, o menino de gênio doce, conduz o leitor pelas memórias mais ternas da infância. Que cheiram a café melado e pão com manteiga, com textura de muro áspero que esfola o joelho, deliciosas como o primeiro amor. E do tamanho da dor - a mais pura e sincera dor. Pretérito Imperfeito é a prova de que a alma dos clássicos não envelhece.


Onde comprar:



A reconstrução do tempo 

Podemos dizer que uma das personagens deste livro é o próprio tempo, na voz de Caetano:
    “E quando eu tiver saído / Para fora do teu círculo / Tempo, tempo, tempo, tempo /
    Não serei nem terás sido / Tempo, tempo, tempo, tempo
    Ainda assim acredito / Ser possível reunirmo-nos / Tempo, tempo, tempo, tempo /
    Num outro nível de vínculo / Tempo, tempo, tempo, tempo”
No Brasil, o realismo fantástico ou realismo mágico é quase uma lacuna, tem em Murilo Rubião e José J.Veiga seus maiores expoentes, hoje em dia pouco divulgados. Seríamos nós um povo de memória curta? É necessário um mea-culpa nacional, com urgência.

Enquanto lançamos nossos autores no esquecimento, nossos vizinhos hermanos provocam com o genial Jorge Luís Borges, os colombianos conclamam Gabriel Garcia Márquez, os peruanos alardeiam Mario Vargas Llosa. Isto só para ficar entre os mais badalados.

O que dizer então da literatura nacional contemporânea, em que os gêneros nem são assim tão estanques? Tudo se mistura numa fusão de cores vibrantes, estilos e ritmos dissonantes. Nesta nova vertente fantástico-realista é que vislumbro Gustavo Araujo, possuidor de palavras tão simples e belas que nos remete a recordações e memórias afetivas que nos são muito caras.

Pretérito imperfeito (Caligo, 286 páginas) já entrou para meu rol de livros inesquecíveis. Um início de leitura despretensioso, sem frases bombásticas, dessas que me deixariam congelado, foi me tomando de assalto em sua simplicidade e me encheu de algo semelhante ao deslumbramento, estou encantado.

O livro conta a história do garoto Toninho e sua amiga Cecília, do desdobramento desta amizade em algo mais consistente. Entre os dois, Pedro Vieira, pai de Toninho, personalidade controversa, torturador arrependido purgando seus pecados.

O passado de Pedro, ou melhor, Sgt.Vieira, insiste em retornar para assombrá-lo, imiscuindo-se no presente de tal maneira que o tempo é fatalmente desorientado, o que redunda na reconstrução do tempo, um novo tempo, um tempo mágico, fantástico. Passado e presente encontram-se em um “lugar especial”, ponto de encontro de Toninho e Cecília.

Como diria Rubem Alves: “Todo mundo gostaria de se mudar para um lugar mágico. Mas são poucos os que têm coragem de tentar”. A coragem e a inconsequência de Toninho consegue transportá-lo para lá, a impetuosidade e a inteligência de Cecília também. Pedro precisará encontrar o seu caminho, superar a perda de seu amor e os fantasmas de suas vítimas, sob pena de perder-se de seu filho. Mas como fugir de si mesmo e do passado que o persegue? Haverá alternativas, rotas de fuga?

Toninho é um garoto ridicularizado por seus colegas de escola. A cada leitura em sala de aula, o vexame e a vergonha que o fazem gaguejar:
    “... Toninho fechou o livro e se sentou. Sentiu vontade de quebrar a cara daquele garoto idiota. De dizer umas verdades à professora. Queria gritar na cara dela, perguntar-lhe se sentia prazer em fazê-lo passar por aquele sofrimento toda santa aula... ele apenas abaixou a cabeça e apoiou a testa com uma das mãos...”
Volta para casa e não encontra em seu pai, Pedro, um ponto de apoio. Não há um abraço amigo, um consolo paternal. O silêncio é o inferno, uma barreira intransponível feita de concreto e amargura. A relação entre eles é calcada na falta de contato, de tato, de carinho.

Seu único prazer é sair de casa com sua bicicleta rumo a seu “lugar especial”, observar passarinhos. E é neste lugar que um belo dia Cecília aparece, ou seria Mariana? O nome importa menos, o que realmente importa é que deste encontro surge a amizade, o desejo de estar juntos.
    “... era voluntariosa, espevitada, petulante – parecia sempre pronta a provocá-lo. E às vezes fazia isso de modo evidentemente manipulador, difícil de resistir. Talvez fosse por causa daqueles olhos castanhos enormes que ao mesmo tempo o assustavam e desafiavam... Estar com ela era experimentar a serenidade, mas também era sujeitar-se ao desconforto, às exigências que ela fazia para que ele vencesse suas dificuldades.”
Ali há a descoberta da satisfação que o ato de ler traz. A felicidade de aprender ou de se observar inserido no enredo. Para descobrir o que somos, é preciso descobrir aquilo que não somos. A leitura nos propicia tal inferência sem que nos machuquemos de verdade. Isso aconteceu comigo lendo Pretérito imperfeito, era como se estivesse olhando fixamente o espelho, mirando-me, descobrindo minhas imperfeições, sendo que esta visão especular se mostra a serviço de algo maior, que vamos reconhecendo lentamente:
    “Pensando agora, percebo a obviedade dessa receita. O que faz da leitura algo tão prazeroso é justamente imaginar a cena, as pessoas, as vontades, enfim, enxergar a si mesmo, identificar-se com as situações descritas...”
É engraçado como a literatura é feita de ciclos e retomadas. E é neste contexto que percebemos o quão próximos estão Marguerite Duras e José Saramago (em épocas totalmente distintas) de Gustavo Araujo. Não no conteúdo ou mesmo na forma, ambos herméticos naqueles, mas na similaridade de uma escrita emocional e catártica. Sentimo-nos desnudados.

Como se não bastasse, o passado de Pedro Vieira está repleto de personalidades históricas que se fundem à trama ficcional, algo que me apetece e sempre me faz mergulhar desvairadamente na busca de dados pelo Google.

Uma foto revela um sr.Pedro desconhecido para Toninho, que na verdade jamais conheceu o pai. No caso, uma foto de “Sgt.Vieira”, ao lado de Filinto Müller, o temido chefe da Delegacia Especial de Segurança Política e Social e seus asseclas – Cap.Teixeira, Cap.Miranda, Ten.Romano, Tem.Kruel – , definidos pelo repórter David Nasser, no livro “Falta alguém em Nuremberg”, como recrutados do Exército, indivíduos cujo servilismo ao governo e brutalidade com os presos contribuíram para as violações dos direitos humanos ocorridas na época.

Todos estes existiram realmente, com Filinto Müller à frente da chefia de polícia. Por diversas vezes foi acusado de promover prisões arbitrárias e utilizar-se da tortura no trato aos prisioneiros. Ganhou repercussão internacional o caso da judia alemã Olga Benário, militante comunista e mulher de Luís Carlos Prestes, que por sua ordem foi deportada para um campo de concentração nazista na Alemanha, onde foi executada em 1942.

O livro é repleto de mensagens subliminares querendo tocar meu passado, jogando com o menino que fui ou ainda sou, não sei. Afinal, somos frutos das escolhas que fazemos desde a infância, vamos nos moldando com cada acontecimento, cada estrada escolhida, cada caminho tomado.

Toninho, elo de ligação entre os três, deverá descobrir quem é Cecília. Esta, quem e onde está seu pai. E Pedro, quem de fato é ele próprio. E todos terão que encontrar, em si mesmos, força para tal revelação.

Este é um dos livros mais lindos que li neste ano, além de emotivo, romântico e poético. Grata surpresa! Gustavo Araujo, seja bem-vindo ao universo literário, bem-vindo ao meu mundo que parecia tão somente meu e que você tão bem soube despir. Como é bom ler um livro e se sentir redimido, redivivo, rejuvenescido. Por tudo isso e tantas outras coisas mais, agradeço de coração à Bia Machado, coração e mente da Editora Caligo, por me presentear com um livro tão “especial” (desculpem-me a redundância). Então segure minhas mãos e vamos saltar:
    “Com um leve impulso saltaram. Um salto que durou para sempre.”
Frases como esta são imortais, atemporais. Livro altamente recomendado!


Ciumento por natureza, descobri-me por amor aos livros, então os tenho em alta conta. Revelam aquilo que está soterrado em meu subconsciente e por isso o escorpiano em mim vive em constante penitência, sem jamais se dar por vencido. Culpa dos livros!
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