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27.12.23

Oxigênio [A. L. Barreto]


Para finalizarmos o ano em grande estilo, segue conto Oxigênio do amigo e autor A. L. Barreto, que se passa em uma distopia industrial cyberpunk.
Você também encontra no blog uma Book série completa chamada ENGENHARIA REVERSA e duas novelas: AURORA VAGA-LUME E OS DEUSES CROMADOS e O VAPORCELLO, A MUSICISTA E A MECANOIDE do autor.
Espero que apreciem bastante.
Feliz Ano Novo.

Oxigênio - Conto do Autor A. L. Barreto

Não faço a menor ideia de como o mundo apodreceu. Quando nasci, o ar já era tóxico e os céus cheios de cobre. João, o homem que me criou, quando enchia a cara fazia discursos pomposos sobre o passado. “A gente tinha muitos dias de sol! Não se pagava um tostão para se respirar! E as árvores? As plantas? Você sabe o que é uma orquídea, pivete?”. Ele ficava insuportável falando de um mundo que não existia mais. Teimava em querer me dizer o que era certo e errado segundo sua lógica esquisita. Mas aquele velho barrigudo era tudo que eu tinha.

Um belo dia meus pais perderam o emprego. Não tiveram mais como pagar pelo aluguel e pelo oxigênio. Eu era um pirralho que não entendia porra nenhuma, mas sabia que algo estava errado. Eles andavam tensos, pegavam qualquer bico que garantisse um mínimo de grana. A última coisa que perdemos foi o sistema de oxigênio da PureLife. Sem ele, passamos a viver de cilindros de ar.

Após o despejo, mudamos para o Condenópolis, um aglomerado de favelas que virou um bairro-cidade. Nossa casa era um contêiner selado com a ajuda da comunidade. No início as coisas não estavam tão ruins, mas aí os bicos sumiram e a miséria aumentou. Rosa, minha mãe, tinha que cuidar de mim e passar muitas horas na fila da Igreja para encher os cilindros de ar.

Um dia papai acordou cedo e se despediu com um sorriso no rosto. Disse que tudo melhoria. Nunca mais voltou. Um tempo depois descobrimos que ele se envolveu com as pessoas erradas. A polícia só jogou o corpo na nossa porta e cobrou uma taxa pela entrega. Mamãe vendeu o neurochip dele para pagar o enterro. Ela ficou destruída. Tornou-se apática, mal falava comigo. Não demorou para o vício em karmalina tomar conta. Tal como meu pai, Rosa saiu de casa e desapareceu. Procurei por ela em todo canto até perder as esperanças.

Eu estava entregue a minha própria sorte. Mamãe deixou alguns cilindros de ar. Eu teria que ir até a Igreja para recarregá-los. Também precisava comer e beber, mas não tinha dinheiro. Uma ideia surgiu: vender alguns cilindros no mercado popular. Fiz isso, mas calculei mal. Na volta para casa, uma tempestade pegou a cidade de jeito. O serviço de geolocalização caiu e eu me perdi. Só me restava dez por cento de ar.

Acho que você pode imaginar o desespero. Veio a noite e com ela a angústia aumentou. Havia muita gente na rua e implorei por ajuda, mas as pessoas me evitavam como se eu fosse um fantasma. O flutuador da polícia passou e eu gritei para eles. Mas naquele mundaréu de gente não tinha como me ouvirem. A respiração ficou ofegante, o corpo cansado. Os bips de alerta não paravam. Era cada vez mais difícil pensar. Então vi o neon cintilante piscando em azul. “Compre aqui seu Oxigênio!”. Era uma lojinha de ar na entrada de um beco encardido.

Corri arfando e cheguei ao beco. Esse foi meu erro, pois o ar acabou. O pânico me fez arrancar o respirador. Caí de joelhos apoiando as mãos no chão imundo. O ar pesado entrou queimando as narinas. Primeiro veio o odor sufocante da fuligem, depois minha boca secou. A visão embaçou e o coração disparava. O pulmão desesperado não ligava para a toxidade. Ergui a cabeça e inspirei por vários minutos. A tosse destruía minha garganta. Meus olhos ardiam e um gosto de carvão tomava conta. Eu não conseguia mais respirar. Um vulto se aproximou, era um homem grande, coberto dos pés a cabeça. Seu visor digital brilhava com luzes verdes fosforescentes. Por algum motivo desconhecido, ele me levantou e correu comigo para a lojinha. Assim que entramos, o ar purificado me trouxe de volta.

— Guenta aí que vou te levar pro o hospital.

Aquele homem era o João.

Sobrevivi, mas meu corpo foi sequelado para sempre. Tive sérios problemas de desenvolvimento que me deixaram com um aspecto horrível: magreza extrema, ausência de pelos, musculatura atrofiada, pele ressecada. Eu parecia uma caveira e essa alcunha funesta virou meu apelido. Mas quer saber? Eu não ligava. Inclusive, eu era o perfeito retrato da realidade à minha volta.

João era o dono da lojinha de oxigênio, que também era uma oficina nos fundos. Ele pagou meu tratamento e me deixou morar lá. Em troca, me queria como aprendiz e empregado. Mão de obra barata, excelente negócio. Eu seria pago com teto, ar e comida. Na minha situação era o melhor que poderia acontecer.

Ele me ensinou como consertar respiradores, chips de controle, válvulas de cilindros e até purificadores portáteis, que eu nem sabia que existiam. O problema era minha fraqueza, por isso me cansava muito rápido. Mas João não desistiu de mim. Ele me levou no mecatrônico do bairro e pagou por implantes nanomotorizados. E um neurochip novinho. Minha dívida cresceu, mas e daí?. Eu dava conta do serviço e de quebra comecei a frequentar a noite vibrante de Condenópolis.

Às vezes, João sumia durante meses, mas como eu conquistara sua confiança ele me deixava no comando da oficina. Tinha um robô que cuidava da lojinha. Um belo dia, após uma desas viagens, ele me encontrou trabalhando no purificador da dona Ana. João estava diferente. O semblante carrancudo, os lábios bem apertados. Nunca o vira daquele jeito.

— E aí, garoto, como vão às coisas? Terminando o purificador?

— Tudo na paz, Jão. Tá quase pronto, só falta trocar a válvula de pressão.

— Maneiro. Mas é o seguinte, deixa isso aí que eu termino. Preciso falar com você.

Ele piscou um olho e foi para o depósito nos fundos da oficina. Que estranho, pensei. Soltei a chave de fenda e limpei a graxa das mãos. Fui atrás dele.

— Que tá pegando, Jão?

Meu chefe esfregou o rosto e bufou. Exalava preocupação.

— Bom, aconteceram umas coisas aí. E acabou que vou precisar da sua ajuda. Senta aí.

— Mas é claro, chefe! E vai ajudar a pagar minha dívida?

— Dívida? Ah, sim, claro que vai. Mas agora presta atenção.

Eu fiz que sim com a cabeça ao que ele continuou:

— Lúcio, eu preciso que você vá na sede da PureLife, amanhã cedo. Chegando lá, procure um guarda chamado Ernesto, e somente ele, compreendeu?

— O que tá rolando?

— Quanto menos você souber, melhor. Só vai lá e encontra o cara. Ernesto vai te dar um pacote. Aí você volta pra cá com ele.

Cocei a cabeça.

— Só isso?

— Só! Tudo certo?

— Você manda eu obedeço, chefe!

— Ótimo. Agora me dá seu neurochip aí.

— Hein? Mas pra quê?

— Eu vou instalar um ofuscador. Vamos precisar mudar sua ID.

Naquele momento arregalei os olhos. A parada ficou estranha.

— Mas isso é software proibido!

— Eu já te disse: quanto menos você souber, melhor. E não vai ter problema se fizer direitinho. Vai num pé e volta no outro, ligeiro.

Ele ficou me encarando, esperando pela resposta. Tudo aquilo era muito inesperado. E quando ouvi ofuscador me deu um frio na barriga. Conhecia um sujeito que se deu mal por usar software ilegal. Mas era o João, o cara que salvou a minha vida. Ele não iria me colocar em roubada. Além disso, gostei da ideia de sair da rotina, fingir que era tipo um agente secreto.

— Beleza, Jão, pode contar comigo.

— Ótimo, moleque, ótimo. Bom, amanhã cedo eu te entrego o chip. Deixe ele comigo e vai lá pro terraço. Liga a grelha. Vou instalar o ofuscador e depois vamos tomar umas, tem bastante tempo que não molho a garganta.

A noite terminou regada a cerveja e churrasco de sintaína.

No dia seguinte, levantei cedo, coloquei meu sobretudo e achei o neurochip sobre a mesa do café. Peguei um cilindro de Sweet Green, oxigênio purinho e aromatizado, coloquei ele no suporte da calça.

Ao sair, João veio até mim ainda de pijamas e colocou a mão sobre o meu ombro. Ele sorriu, o que era muito raro. Disse:

— Lembre-se: pegue o pacote com o Ernesto e corra de volta pra cá. Boa sorte, guri.

Beleza. Pisei na rua e tomei meu rumo. O respirador regulado, meu visor já mandando boletins do tempo. O céu estava púrpura, quinze graus, sem chuva. Nuvens ácidas soltavam raios amarelos. Típico. Peguei o metro, pois a sede da PureLife ficava lá no centro, uns vinte quilômetros.

Eram quase oito horas quando saí da estação. Centenas de trabalhadores enchiam as esteiras automáticas. O ar como sempre denso e opaco. Nas entradas das ruelas, pequenas nuvens verdes pairavam sobre os bueiros. Letreiros digitais espalhados por todos os lados enchiam o vapor de hologramas e neons. Overdose de informação inútil e viciante. Isso tudo sem contar a realidade aumentada. Não dava nem para desligar a interface, era como arrancar uma parte do corpo. A rota para a empresa brilhou no meu visor, mais vinte minutos para chegar lá. Saí da esteira e me misturei a um grupo de operários. Cruzamos com uma unidade dos arcanjos, a força policial. Ganharam esse apelido porque usavam auréolas holográficas ao redor da cabeça. Uma coisa braba, tecnologia de outro nível. Com aquilo eles enxergavam dentro da neblina em todas as direções ao mesmo tempo. Além disso, moviam-se muito rápido e era raro usarem armas de fogo. Incapacitavam qualquer um com golpes marciais ou bastões elétricos.

Pouco depois, cheguei na PureLife. Tinha uma portaria separada para visitantes. Meu visor foi invadido por informações corporativas. O sistema deles puxou minha ID. O coração bateu mais forte, cerrei os punhos. A empresa rodou uma análise enquanto eu suava frio. Um quadradinho verde pixelado apareceu no meu visor e a porta abriu. O ofuscador funcionara. Entrei e removi o respirador, aliviado. Um ar puro e fresco invadiu meus pulmões. Era tão bom que massageava as narinas por dentro. Imaginei que no passado era assim em todos os lugares. Lembrei dos discursos do João. Lá dentro só mais dois visitantes, uns caras grandes que mal me olharam. A moça da recepção se aproximou. Era bem bonita, parecia até uma modelo de holo-ad. Ela usava o uniforme azul-claro da empresa e os cabelos castanhos presos em um rabo de cavalo, super corporativa.

— Vocês chegaram cedo para o tour guiado. Vai começar só as dez. Mas podem aguardar ali e desfrutar do nosso ar puríssimo. — Ela apontou para um sofá grande que parecia bem confortável.

— Moça, eu não vim para o tour. Estou procurando o guarda Ernesto — disse exibindo meu melhor sorriso.

A recepcionista se virou para mim e meneou a cabeça, confusa. De súbito, ergueu as pálpebras.

— Ah sim! — O visor dela exibiu um punhado de dados. Meu coração acelerou.

— Você é o cunhado do Ernesto, certo? Roberto? Veio pegar uma encomenda. Ele avisou que você viria.

O ofuscador mandou bem de novo. Eu já estava curtindo a missão.

— Isso, sou eu mesmo.

— Pode entrar ali. Só seguir reto até a sala de controle.

Agradeci e fui até o lugar. Atravessei um pequeno corredor. A sala de controle estava cheia de tralhas eletrônicas: monitores, consoles, holografias por todos os lados. Recebi o nome dos guardas direto no visor, havia quatro deles. Ernesto era o único de pé. Ele veio até mim.

— Grande Roberto! Chega mais.

Ernesto deu um tapinha no meu braço e me arrastou para uma saleta nos fundos. Fechou a porta.

— Eu já tava achando que o João tinha amarelado — ele disse.

O cara suava horrores. Os olhos arregalados não piscavam, os músculos do rosto rígidos que nem vergalhão. O pacote era uma mochila verde que ele pegou da estante de utensílios.

— Tome! Prende bem nas suas costas.

— Pesado isso. O que tem na mochila?

— Não é da sua conta! Você é só o entregador. Aqui, o cartão de acesso.

— Cartão de acesso?

— É! Você não vai voltar por onde entrou, moleque. Vem que vou te mostrar.

O sangue gelou. Aquilo não era o combinado. Bem afobado, Ernesto grudou o cartão de acesso no meu sobretudo e me puxou de volta para a sala de controle. Eu quase enfartei quando o vi, do nada, sacar a pistola. O medo me travou. O maluco sentou o dedo no gatilho. Matou os companheiros pelas costas, a sangue-frio.

— Porra! Ernesto! — gritei com meus olhos pulando das órbitas.

Um painel subiu na parede revelando o acesso para um túnel.

— Entre ali e sebo nas canelas. Tu vai sair na rua de frente para o JetLag. Espere lá pela Pietra. E arranca esse neurochip.

Não se contraria um maluco armado. Tirei o chip e joguei longe. Mas as coisas passaram do limite.

— Cara, quem é Pietra? JetLag? Que porra é essa? Esse não foi o combinado! Eu tenho que voltar pra Condenópolis e entregar essa mochila pro João.

— Vaza, moleque! — ele gritou com sangue nos olhos.

Rajadas de metralhadoras ecoaram na recepção. Ernesto empunhou o revólver e foi para lá como se possuído. Ouvi gritos, era a modelo. Que merda estava acontecendo? Luzes vermelhas surgiram no teto e um alarme estridente disparou. Com o coração na boca, entrei no túnel. Na metade do caminho ouvi um estrondo que nem um trovão abafado. O teto tremeu e eu me joguei no chão. Esperei até a poeira cessar. Pouco depois, cheguei ao final do caminho. Uma pequena escadaria me levou para uma escotilha que se abriu quando cheguei perto. Do outro lado da rua, vi o tal do JetLeg, era um pub.

Flutuadores dos arcanjos cortaram o céu sobre o pub. Olhei para trás e não acreditei quando vi a torre de fumaça e fogo brotando da sede da PureLife. O povo corria para filmar. Imaginei os feeds da HiperNet transbordando. Eu estava off-line sem o chip, ou seja, morto para o mundo. Precisava achar um jeito de falar com o João. Lembrei-me que o maluco do Ernesto mandou esperar na frente do JetLag pela tal de Pietra.

À medida que o tempo passava, pior eu me sentia. O céu já lotado de naves da imprensa, segurança corporativa e polícia. De repente, ouvi um ruído de motor. Uma Yanagi Akataka cortava o asfalto na minha direção. Uma garota de jaqueta azul metalizada pilotava a moto. Aquela máquina valia uma fortuna. Deduzi que ou a menina era rica, ou uma ladra das boas. Ela parou do meu do lado e subiu a viseira do capacete, olhos hipnóticos de um verde profundo me esquadrinharam.

— Você é o Caveira?

Balancei a cabeça confirmando.

— Se livrou do neurochip? O pacote tá intacto?

— Sim… Sim, tudo certo… moça.

— Ótimo. Sou Pietra. Pega o capacete aí atrás e sobe na moto.

Fiz o que ela mandou com o peito quase explodindo. Pietra fechou a viseira e pisou fundo fazendo o motor rugir. Instantes depois, estávamos cruzando as mega avenidas rumo a selva de túneis do metroplexo de São Paulo.

Pietra ignorava os sinais vermelhos e fazia a moto dançar no meio dos carros. A adrenalina borbulhava que nem coca-cola. Essa garota tá usando algum software de pilotagem, pensei. Então notei que a moto estava off-line. Ela conduzia a máquina na mão, que nem nos velhos tempos.

A Yanagi cuspia fogo. Pegamos um desvio, saindo da pista cheia. Os hologramas no meio da fumaça indicavam que deixávamos Santa Mariana rumo a Nova Diadema. Saltamos dos túneis a mais de cem por hora. Nenhum carro para atrapalhar. O motor rosnava enfezado. Do nada uma sombra alcançou a gente. Olhei para cima e não acreditei no que vi. Era um flutuador dos arcanjos.

Por mais potente que a moto fosse, não tinha como vencer uma nave da polícia. O flutuador nos passou e fez um cavalo de pau no céu. Os canhões saíram da fuselagem enquanto ele pousava. A couraça prateada se destacava frente a muralha de arranha-céus cinzentos no horizonte. Pietra fez a única coisa possível, desacelerou a moto até parar.

— Me dá a mochila, Caveira — ela gritou.

— Mas o que você vai fazer?

Um batalhão de arcanjos saiu da nave. No meio deles surgiu um cara de cabelos brancos curtos, barba alinhada e terno impecável. Seguranças corporados escoltavam o sujeito. Já o vira antes. Não acreditei, mas ali estava Apolo Zimerman, o todo-poderoso trilionário dono da PureLife. E ficou pior quando os capangas empresariais desceram a rampa com o João. Ele estava algemado, o rosto arrebentado de tanta porrada e as roupas empapadas de sangue.

Pieta sacou uma pistola de aspecto brutal. Era grande e prateada. Algum protótipo militar. Então, mirou em Apolo.

— Me dá a porra da mochila — ela repetiu mais contida, porém cheia de ódio.

Eu estendi o braço para entregar, mas congelei quando um dos corporados colocou a pistola na cabeça do João.

Os arcanjos nos flanqueavam. O trilionário tomou a frente. Ele ergueu os dois braços pedindo calma.

— Querida, não precisa ser assim. Por favor, abaixe essa arma. — Apolo se virou para mim. — Você é o Lúcio, certo? Garoto, me entregue a mochila que tudo acaba aqui. Você e seu amigo podem voltar para Condenópolis e continuar a vida.

As nuvens de poluição trovejaram atrás do flutuador. Como João se meteu com aquela gente? Uma angústia insuportável fazia minha cabeça doer só de olhar para ele. O coitado mal abria os olhos. Que os poderosos se matassem, concluí. Era só entregar a mochila para o ricaço e tudo se resolveria. Só tinha um problema: Pietra. Ela apontou aquela arma intimidadora para mim.

— Lúcio! Não obedeça ao desgraçado do meu pai, não confie nele! Você não faz ideia do que pode acontecer se ele ficar com o vegemita! Me dê logo essa droga!

— Vege… o quê? Porra, Pietra, é a vida do João que tá em jogo!

De repente, alguma coisa atingiu Pietra. Um brilho cegante saiu do cano da arma com um estrondo ensurdecedor. Um impacto no peito e fui arremessado para trás. Caí de costas no asfalto. Um arcanjo agarrara Pietra. Na confusão, ela disparou. O tiro abriu um buraco na minha barriga. Demorei alguns segundos para entender, mas quando a dor veio, foi com tudo. Gritei em prantos com a certeza de que a morte estava perto. Um frio sobrenatural crescia como erva daninha. As lágrimas trouxeram lembranças da infância, dos meus pais, dos momentos felizes com João. Quando as primeiras manchas borraram minha visão, vi Pietra se desvencilhando do arcanjo. Ela se arrastou até a mochila e a abriu, tirando um cilindro de metal. Os corporados correram, mas não conseguiram detê-la.

Pietra abriu o invólucro e arrancou de lá uma pequena criatura. O vegemita. Foi como se o tempo congelasse. Todos se detiveram, até os arcanjos. A coisa era verde e esbranquiçada, pouco maior que uma ratazana, cheia de folhas e flores. Mas havia tentáculos, muitos deles se movendo nervosos. Os botões das flores se abriram e produziram um som estridente e lamurioso, como um coral de crianças mortas.

— Rápido, coloquem o vegemita de volta no cilindro! — gritou Apolo, desesperado.

Os homens voltarem a si, mas quando avançaram contra Pietra, ela foi mais rápida e arremessou a criatura na minha barriga.

O vegemita se abriu e grudou todos os tentáculos nas minhas entranhas. Braços e pernas tremeram em choque. A coisa entrava em mim como se fugisse de um predador. Um zunido encheu o ar e tudo ficou branco. De repente, eu não estava mais sozinho. A princípio, um medo abissal me dominou, mas a criatura fez algo que me tranquilizou. A presença dela passou a me encher de energia. Então, senti que tudo estava mudando. O corpo crescia, assumindo uma forma plantóide. A visão voltou turva.

Eu flutuava a vários metros do chão. Apolo abraçava Pietra contra a vontade dela, João fora abandonado, mas parecia recuperar a consciência. Os arcanjos empunharam seus rifles. Outras naves se aproximavam. Uma presença varreu minha mente e me decifrou, desenterrou meus medos mais profundos. Não sei como, mas ela sentiu pena. Os tentáculos desceram violentos sobre os policiais e os corporados. Eu conseguia provar o desespero dos homens. O vegemita os destruiu e se alimentou de seus corpos. Apolo soltara Pietra, que correu até João e o levantou. Os três entraram no flutuador e a criatura permitiu que eles escapassem. Fiquei feliz por João e até por Pietra, mas eu não era mais o Lúcio. Percebi que alguma coisa acontecia conosco. Novos tentáculos brotavam, flores e ramificações surgiam. Raízes cortavam o concreto a entravam fundo no solo morto e esquecido, muito além dos cabos óticos. Estávamos nos alimentando da poluição. Eu nunca mais precisaria de oxigênio para viver.
FIM


11 comentários em "Oxigênio [A. L. Barreto]"

  1. Que presentão esse conto do autor A.L. Barreto! Um trama fascinante que facilmente renderia grandes aventuras. Legal disponibilizar outros trabalhos do autor por aqui. Gostei demais do estilo dele.

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  2. Que saudades estava das palavras do Barreto!
    Um super presente de Natal!
    Que conto interessante e instigante

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  3. Estamos nos alimentando de poluição..Que saudade do trabalho do autor!!! Li tudo que foi publicado aqui no blog nos anos passados e isso sim, é fechar o ano de 2023 com um conto necessário e infelizmente, atual!!!
    Genial!!!!
    Beijo

    Angela Cunha Gabriel/Rubro Rosa/O Vazio na flor

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  4. Amei conhecer mais um trabalho do André, mas fiquei com gosto de quero mais, quem sabe se torne uma futura história?!
    Bjos!

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  5. André!
    Excepcional!
    Já estava com saudades dos seus escritos.
    Cheio de ação e final surpreendente.
    Será que teremos uma nova história baseada nesse conto?
    Feliz Ano Novo!
    cheirinhos
    Rudy

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  6. Olá!

    Fazia a
    Um tempão que não tinha nada dos livros dele aqui! Muito interessante
    Arrasou, parabéns 👏👏

    Beijos

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  7. Já li as outras histórias do autor e gostei bastante, até porque ele tem uma escrita bem instigante. Esse novo conto é ótimo, ainda mais com esse tema atual que ele traz. E um final sensacional! 👏👏👏

    Abraços

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  8. Oi, André! Adorei o conto! Achei tudo muito criativo e essa cena da fuga é bem eletrizante. O final me surpreendeu!

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  9. Feliz ano novo 😍! Presente incrível esse conto, adorei ter contato com a escrita desse autor.

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  10. Olá! Quem não gosta de presentes não é mesmo, ótima maneira de fechar o ano e iniciar o novo. Feliz 2024 para todos nós.

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  11. Que bela maneira de começar o ano, com uma história daquelas que sempre nos deixam com aquela pulguinha atrás da orelha, até quando isso será só história hein! Feliz 2024.

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